Catalena 30/01/2021
Nem toda a humanidade esteja condenada a um ciclo de constipação emocional e substituições
Meus pais são um casal que, depois do divórcio, conseguiu manter uma relação não só civil, mas de amizade um com o outro. Meu pai permaneceu presente na minha vida, mesmo que numa casa diferente. Nem ele nem minha mãe casaram de novo, talvez isso tenha influenciado alguma coisa, não sei dizer. Enfim, eles agora estão mais velhos e, depois que minha mãe se recuperou de um caso de pneumonia grave, por sorte uns meses antes da pandemia se instalar, eles decidiram que seria uma boa ideia meu pai se mudar para um apartamento no mesmo prédio da minha mãe. Agora há entre eles 40 e poucos anos de história, uma filha, e 4 andares.
Quando eles me contaram, eu achei uma loucura, afinal eles tinham se separado há anos, eu já estava criada, por que essa proximidade agora? Mas uma coisa que nunca se resolveu foi a distância entre nós — entre eu e eles, entre eu e minha mãe, entre eu e meu pai. Lá atrás, quando eu notei que dividia mais com meu diário do que com as pessoas da minha vida e olhei mais atentamente para a origem desse hábito, alguma coisa se perdeu irremediavelmente, e não foi o hábito. Desde então, eu tenho com eles uma relação prática em que há lealdade sem haver intimidade. Então, quando eu soube da mudança, não interferi, embora estivesse chocada. É uma coisa que facilitou a minha vida, claro, tanto em termos de deslocamento quanto de preocupação. Quanto mais a gente envelhece, mais precisamos de alguém, e isso é um fato que não tem nada a ver com solidão ou carência afetiva. Tem a ver com as dores nas costas, a pressão alta, o esquecimento, a fraqueza dos ossos. Pensando nesses termos, eu consegui fazer mais sentido da decisão deles, dá pra entender uma segurança extra, ter alguém com quem contar, mas só consegui entender todo o resto alguns dias atrás, conversando com o Leo.
O Leo é mais romântico do que eu, embora seja muito menos introspectivo. Ele tem uma certa sensibilidade certeira na hora de ler as pessoas ao redor, um entendimento intuitivo que faz com que ele compreenda aquelas coisas que existem entre o céu e a terra para além da nossa vã filosofia. Em retrospecto, vejo que muita da minha atração por ele veio daí, dessa natureza entendida das coisas mais abstratas e sentimentais. Eu, que tenho medo de tudo, não tenho medo do Leo, e inclusive acredito que confio mais coisas a ele do que a esse diário. Foi um longo caminho até aqui, é preciso alguém muito especial para fazer sentido de todos os horrores e maravilhas do mundo lá fora. Depois de falar com minha mãe no telefone e ter certeza de que meu pai não tinha se machucado ao escorregar no banheiro, contei para ele que, mesmo durante situações emergenciais como essa, eu nunca tinha entendido completamente a escolha habitacional dos meus pais. O que se seguiu foi uma cena de encontros e desfechos que eu gostaria de poder ver nos palcos e nas telas:
— Sabe, sempre admirei a relação dos seus pais. São poucas as pessoas que se separam e conseguem manter uma amizade genuína, uma cumplicidade. Quando nós nos conhecemos, nós dois já tínhamos deixado de precisar dos nossos pais. Os meus continuam casados, é uma situação diferente, mas seus pais, tecnicamente falando, não precisavam ter continuado na vida um do outro. O fato de que continuaram me faz pensar que talvez nem toda a humanidade esteja condenada a um ciclo de constipação emocional e substituições. Eles existiam antes de você, os dois construíram toda uma vida e uma dinâmica antes de serem seus pais, e é impressionante que tenham conseguido conservar um tanto disso depois de você, depois da separação, depois da sua independência. Nenhum deles tem uma personalidade particularmente sociável ou extrovertida e, embora jamais tenham aprendido a se comunicar com você da forma que você merece, aprenderam a se comunicar entre eles. Os dois já viram tudo que é possível ver de outra pessoa, criaram uma filha juntos, se conhecem há mais tempo do que nós existimos. Eu acho que, no lugar deles, eu também iria querer por perto alguém que pudesse olhar pra mim velho e com dificuldade de respirar, esquecendo as coisas e cheio de remédios pra tomar, e ainda conseguisse ver no meu rosto todos os caminhos que me trouxeram até aqui, todas as pessoas que eu fui antes de precisar de ajuda para levantar do chão do chuveiro. E esse tipo de conhecimento independe de casamentos e divórcios. Em 40 anos, muita coisa acontece entre duas pessoas, não só o lento desmoronamento da relação. Por que você está chorando?
Ali, diante de mim, estava esse homem que conseguia sentir uma compaixão pelos meus pais de que eu, a filha deles, jamais seria capaz. Eu me senti grata, eu me senti sortuda por ter ao meu lado alguém tão imenso, mas isso em nada mudava a angústia opressiva que tomava conta de mim ao contemplar a ideia de um filho nosso algum dia estar no meu lugar ouvindo de outra pessoa coisas que nós precisávamos ter dito. E eu chorava porque o Leo sabia. Eu podia ver nos olhos dele que ele sabia que não teríamos filhos. Nos abraçamos por muito tempo. Sei que ainda haverá uma conversa em que diremos verbalmente aquilo que, quietos nos braços um do outro, já sabemos, mas não vai ser agora e não vai constar aqui. Algumas coisas são íntimas demais até para diários.
Combinamos de ir tomar um café socialmente distanciado com meus pais na semana que vem. Pedimos pizza e assistimos Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei pela centésima vez. Depois, dormimos a noite toda abraçados como não fazíamos desde o começo do namoro. Não ficamos com calor.
Catarina Helena Drummond, 35 anos