Antes da pandemia, quando o mundo ainda era mundo, mandar mensagem e telefonar para amigos que moram longe era um prazer sem pretensões, uma resposta quase automática para trazer pra perto, por pelo menos um segundo, pessoas que não sabíamos quando, mas que eventualmente veríamos de novo em visitas e viagens não tão distantes assim. Em ocasiões especiais, trocávamos cartas e pequenos presentes, lembranças para dizer “eu-sei-que-essas-balas-são-caras-onde-você-está-então-comprei-pra-você” ou “esse-cartão-postal-é-a-sua-cara-não-resisti”. E embora as mensagens e telefonemas continuem — as cartas não mais, uma questão prática —, eles agora são a única opção, e por isso passam a ter uma camada de desespero que transforma qualquer contato numa tentativa de fingir que a ameaça de nunca mais não existe e não nos assombra.
A parte de “nunca mais” talvez seja um exagero dramático de minha parte, mas trata-se de um período dramático, principalmente agora que desliguei o telefone depois de falar com a Fernanda, minha melhor amiga há 20 anos que se encontra há muitas milhas daqui já faz quase um ano, vai continuar longe por pelo menos outros dois, e a falta de previsão para vê-la de novo está me sufocando. Não é como se nós nos víssemos toda semana quando ela estava por aqui, nossas vidas têm demandas tão distintas quanto exigentes, e as rotinas e obrigações ocupavam mais espaço do que talvez devessem. Quando ela enviava um vídeo da minha afilhada, porém, ou reclamava da sua mãe e dos seus colegas de trabalho inacreditavelmente incompetentes em mensagens cheias de palavrões e onomatopeias, a troca de inocente pedaços da vida de todos os dias era só isso: inocente, leve, uma pausa na loucura. Agora, quando essas mensagens chegam em horários esquisitos e as conversas acontecem em parcelas mais vezes do que não, a carga de saudade e a ausência de um reencontro no horizonte sequestram uma parte da alegria trazida pelas notícias de alguém que a gente ama.
É verdade que a saudade e a distância estariam ali com ou sem a pandemia, mas a agonia não vem do espaço entre nós, e sim da eliminação de qualquer outra possibilidade que não esse espaço. Não há outra alternativa: não há como reservar passagens, planejar visitas e reencontros quando o melhor que podemos fazer por quem amamos agora é ficar longe, ainda mais em condições intercontinentais. Se até os amigos que estão perto precisaram ser afastados, passando no máximo a existir um por vez num limbo da duração de um café, aqueles que estão em outros fusos horários viraram personagens platônicos de uma nova maneira de se relacionar que eu ainda não entendi. Alguém entendeu?
Se a Fernanda lesse isso aqui, ficaria pasma com a carga de sentimentalismo discutivelmente barato. Sempre a mais pé no chão das duas, ela acredita em aguentar as circunstâncias e aguardar as cenas dos próximos capítulos, enquanto eu sempre me perdi, e continuo me perdendo, na ilusão de permanência de fases e condições na realidade passageiras. Nos nossos dias mais jovens, o fim do mundo acontecia todos os dias na minha cabeça, e foi a segurança e o bom senso da presença dela que acalmaram a urgência das minhas paranoias. Nesse cenário pandêmico sem previsão de acabar, a necessidade de conviver mais intimamente com a incerteza faz com que eu precise da sua calma e paciência mais do que nunca. Tem coisa que só colo de amiga cura, e o medo da falta dela ser prolongada até o irreversível é uma dessas coisas.
Vai ver que, enquanto o mundo continuar nesse vai e vem de um vírus que na verdade nunca nem foi, seja preciso viver as amizades no reino da imaginação. Fantasias de encontros e celebrações num tempo ainda removido dos calendários mais próximos. É preciso que a gente ame mais do que sinta saudades para podermos continuar em frente.
Catarina Helena Drummond, 35 anos