18/02/2021
A vida da gente é arte só para os outros. Para nós mesmos é a casa que temos no mundo e, como uma casa, precisa de ar, de espaço, de manutenção
Todo carnaval tem seu fim, e um diário, ou vários, também tem. Esse é o final do meu.
As últimas semanas foram intensas e exigiram que eu me abrisse e expressasse pela fala algumas de minhas angústias mais caladas, mais escritas. Eu sabia que tinha uma hora em que a mão cansava depois de muito escrever, mas não tinha ideia de que é possível sentir todo o peso dos próprios ossos depois de dizer e ouvir tudo o que um dia se imaginou na sala de uma casa, num consultório, entre os lençóis. Foram sessões de terapia intermináveis, discussões de relação cheias de demandas em sua produtividade, muitas conversas despretensiosas que se revelaram momentos fundamentais, a lateral da mão manchada com toda a tinta da caneta. O carnaval chegou como um suspiro depois de um longo dia de trabalho e, em toda sua não-carnavalice, terminou como um sono bem dormido. Tá calor aqui dentro e lá fora, e só há mais algumas páginas.
Decidi não ter filhos. Decidimos continuar casados. Decidi voltar a estudar. Decidimos pintar todos os cômodos do apartamento com cores novas. Decidi cortar o cabelo. Decidimos ir para o Atacama quando a pandemia acabar e o verão voltar. Decidi parar de manter um diário.
Pelo menos por um tempo. Escrever o que nos habita é um exercício saudável de autoconhecimento e criatividade, mas perde o sentido, ou a função, quando vira fuga, muleta, desculpa. Uma forma de não encarar o que não se quer. A vida da gente é arte só para os outros. Para nós mesmos é a casa que temos no mundo e, como uma casa, precisa de ar, de espaço, de manutenção. No baú ao pé da cama estão todos os diários da menina que fui e da mulher que me tornei, enquanto seguro em minhas mãos o registro da mulher que sou, mas não daquela que serei. Se esse é um momento de renovação, e é, eu quero usá-lo para descobrir de quais outras formas podemos existir no mundo, eu e todas as outras que já fui. Talvez a gente possa existir pintando, fazendo origami, jogando xadrez. Talvez a gente possa existir em todas as formas possíveis de manifestação artística. Talvez a gente possa existir em meditação.
Talvez eu possa existir abraçando todas as minhas verdades, assim como elas são, em alto e bom som ao invés de dentro de um baú. Sem medo. Ou com medo mesmo.
Eu aprendi muito sobre mim em todos os momentos em que me escrevi, e depois quando li e reli a mim mesma. Há um certo prazer em nos vermos fotografados em palavras em papéis que vão durar muito mais do que nossos corpos, uma certa vaidade tão íntima e profunda que só entende quem tem coragem. Mas eu também escondi muito de quem eu sou do resto do mundo, e uma prisão ainda é uma prisão mesmo que você a escolha. Hoje eu escolho ser fora da página, sem nenhuma documentação controlada de tudo aquilo que penso e sinto, e que acontece e eu não controlo, que às vezes me faz tão triste e outras tão feliz.
Vai ver eu vou comprar um novo diário daqui a seis meses ou um ano. Vai ver eu vou escrever um diário de bordo quando estivermos na noite do deserto. Vai ver agora eu vou escrever nas bordas dos jornais, vai ver eu não vou escrever nunca mais. Faço dessa última linha nesta última página uma porta aberta para todas as possibilidades que virão. Podem entrar. Quem vai sair agora sou eu, com todas as verdades de quem já fui, sou e vou ser.
Catarina Helena Drummond, 35 anos
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Escrito por Maria Ziareski para Nua&Crua