13/07/2004
Se ninguém nunca leu meus diários — e ninguém nunca me leu do mesmo jeito que ninguém nunca me ouviu —, alguma versão de mim, seja ela qual for, existe de verdade?
Até agora, no auge dos meus 19 anos, eu não-ironicamente tinha conseguido evitar crises existenciais de grandes proporções. Infelizmente, aquilo da gente não poder fugir pra sempre é verdade: um dia a conta chega, e a minha aparentemente chegou.
Em casa, quando eu ainda era pequena e antes da separação entre Igreja e Estado, meus pais e eu nos comunicávamos por meio de histórias. Um conto de fadas ali, uma história de folclore aqui, incontáveis originais da família Drummond. Logo que aprendi a escrever, eles me deram um diário de presente e me encorajaram a registrar ali todos os meus pensamentos e sentimentos, o que acontecia comigo. “As coisas que você não conta pra ninguém”, disseram. Eles explicaram que era uma outra maneira de contar histórias, além de um jeito de preservar memórias. Algo um tanto complexo para uma criança, mas assim são meus pais. Conforme eu fui crescendo e as dúvidas foram surgindo, junto com as angústias e as alegrias confusas, mais e mais eu recorria ao meu diário, como faço até hoje. Como estou fazendo agora. Acostumada a escrever minhas imaginações, ideias, rabiscos, impressões, momentos marcantes, pesadelos muito reais, imagens bonitas, não-poesia, opiniões, tristezas, amores etc. ad infinitum, eu nunca realmente aprendi a falar sobre esse mundo de coisas, sobre o meu mundo de tantas coisas. Talvez fosse isso que meus pais quisessem, um jeito de terceirizar perguntas e conversas difíceis, uma rua com saída. Eu trabalho tudo sozinha, no papel, e assim não incomodo ninguém na minha jornada de tentativa e erro. Mas agora as 26 letras do alfabeto parecem oferecer um número de combinações muito pequeno para explicar a sensação de desaparecimento que me sufoca porque eu não tenho voz.
Até ontem, eu pensava no silêncio como uma escolha, não como opressão. Eu não gosto de conflitos, quer dizer, não sei se não gosto mesmo ou se foi meu diário quem me ensinou a não gostar, a questão é que eu nunca entreti práticas como provar a veracidade do meu ponto de vista, discordar aos gritos, ou insistir em coisas que exigem mais do que eu considero cabível. Nessas ocasiões, eu recorro ao silêncio e desvio a atenção, ninguém me sabe, ninguém nunca nem me viu. Lógico, eu não sou nenhum objeto inanimado: eu participo de conversas e relato certos eventos da minha vida, conto histórias engraçadas porque contar histórias é meu único referencial de comunicação, pergunto coisas como "você-viu-o-que-aconteceu-na-novela-ontem?" — mas mantenho minhas crenças e sentimentos, inclusive minhas opiniões, essas coisas particulares, longe da exposição ao sol. E particulares por quê? Não são elas que me fazem quem sou e me imprimem no mundo? A confusão que uma criança fez entre ser e se esconder, e que ninguém desfez, faz com que eu me veja separada em duas identidades, a do papel de vários diários colecionados ao longo dos anos, pálida e solitária porque nunca viu o mundo, e o mundo não a viu de volta, e a de carne e osso, que é muito mais uma concha colorida na beira de mares alheios e menos, muito menos humana. Qual a importância de uma concha? O que uma concha poderia ter a dizer? Talvez eu de fato seja um objeto inanimado.
As ondas de todos os mares que habito parecem engolir a eu-concha e desmanchar a eu-papel. Eu estou sumindo aos poucos. Se ninguém nunca leu meus diários — e ninguém nunca me leu do mesmo jeito que ninguém nunca me ouviu —, alguma versão de mim, seja ela qual for, existe de verdade? A Fernanda e o Pedro me cobram respostas e até meus pais, ó mundo que gira, perguntam se há algo errado porque eu estou “tão distante”. Em termos brutos, o que há de errado é que ninguém nesse mundo sabe alguma coisa sobre mim além de dados objetivos e histórias que nem sempre são minhas, então como estar perto? Eu não existo em relação. E mereço existir enquanto concha? Vai ver a razão de eu nunca ter saído ao sol é por merecer só sombras de uma existência de tinta; talvez os vários diários tenham me recebido porque não podiam me ouvir, o silêncio me protegendo da rejeição. A palavra medo é formada por uma combinação de 4 letras do alfabeto.
Eu quero trazer tudo o que há nas páginas que escrevi para a luz e existir sem me esconder, numa voz que transforme a menina-concha em mulher. Como se diz a palavra ajuda?
Catarina Helena Drummond, 19 anos