10/12/2020
Eu fui o bem, eu fui o caos, eu fui o riso, eu fui o auxílio, eu fui a companhia, eu fui a falta, eu fui a presença, eu fui o medo, eu fui a convivência, eu fui a solidão.
Vejo todo mundo entrando num clima de balanço conforme o final do ano vai se aproximando, avaliações práticas do quanto se conquistou e do quanto ficou pra depois. O Leo, por exemplo, anda quieto como um túmulo, remoendo todos os planos que precisaram ser revistos, cancelados, adiados, esquecidos por conta do vírus. Me pergunto se dá pra atribuir tanta responsabilidade assim à pandemia, quanto foi que na verdade ela nos segurou e quanto foi a gente que se escondeu atrás dela. Eu mesma a usei de desculpa inúmeras vezes pra sair de enrascadas em família, o natal sendo só mais uma de tantas outras que vieram antes. Nesse momento de recolhimento, eu ignoro os eventos e situações que evitei, os que evitamos, e aqueles que nos evitaram para pensar como eu e aqueles que amo acontecemos nas vidas uns dos outros.
Esse questionamento é um hábito meu já de outros carnavais. Pensar em dinheiro, em trabalho, em sonhos e metas materiais é uma coisa que a gente faz o tempo todo nas nossas noites insones, mas pensar em quem a gente ama sem as obrigações de bater ponto, manter contato, dar sinal de vida não é um cuidado constante que tomamos. Tem sempre alguma coisa mais importante, mais urgente e, se alguém não tá ali imediatamente na nossa frente — ou se a gente não precisa especificamente de alguém —, deixamos que fiquem todos em quadros pregados na parede do fundo das nossas mentes, nós agora meros espectadores. Figuras bonitas e estáticas de momentos no tempo que a gente admira de longe, pessoas cada vez mais retratos e menos humanas. É por isso que eu gosto de pegar esse fechamento de ciclo universal para pensar cá com os meus botões quais os efeitos que eu gerei nas pessoas que amo, e quais elas geraram em mim. Num ano como esse que termina, isso toma uma dimensão ainda maior, pois precisamos fazer tudo diferente, inclusive amar.
Começo com quem tá mais distante. Penso nos meus amigos casuais com quem conversei a quarentena toda sem dizer nada. Eles ajudaram a aliviar a pressão com comentários despretensiosos e risos simples, uma distração carinhosa sem maiores demandas. Essa leveza muitas vezes me assustou, demorei para aceitar que todos precisamos relaxar estrategicamente enquanto o mundo pega fogo para não enlouquecermos. Eu enlouqueci várias vezes nesse ano, mas se agora estou aqui razoavelmente sana é porque o efeito de calma deles silenciou o meu efeito de caos.
Avançando um pouco, penso em meus pais, na minha família não imediata, na família do Leo. Para eles, para todos eles, não fui caos nem calmaria, não fui riso nem susto. Fui ausência enquanto eles me foram preocupação. Liguei, claro que liguei, perguntei se tinham comprado máscara, fui ao mercado para a minha mãe, depois fui à farmácia para o meu pai, dei notícias para a minha sogra, atendi os telefonemas de minha tia. Cumpri as obrigações que me cabiam de maneira excelente — mas só de corpo presente. Tenho uma lista de razões: medo da morte, medo da morte, medo da morte. É difícil cuidar e dar atenção quando confrontamos a efemeridade daqueles que sempre vimos invencíveis. Grupo de risco. Risco de adoecer, de morrer, de deixar pra trás vidas que formaram, nutriram e educaram por falta de ar. Eu tenho um talento narcisista incrível para roubar o foco de coisas maiores para mim. Então, no meio de um pânico global, eu peguei os meus afetos e as minhas mágoas de família, pensei no que significaria perdê-los e usei tudo isso para cumprir muito mais do que um distanciamento social. Fui prática, não joguei conversa fora e machuquei muita gente por não querer lidar.
Foi tudo bem diferente com a família outra, aquela que formei por conta, e aqui me refiro aos amigos fundamentais e ao Leo. Neles, as consequências de nossas trocas são mais evidentes. Vejo a Fernanda cada vez mais compartilhando comigo fotos e vídeos das coisas mais absolutamente banais porque cada vez mais eu quero saber, perguntar, falar, preencher um espaço que na verdade não existe. Ela me acolhe sem reservas e dispensa explicações. O Pablo e o Rogério, nossos vizinhos de porta, dividem de perto com a gente os trancos e barrancos de uma rotina de pernas pro ar, e vivemos juntos um efeito de solidariedade. Acaba que eu me vejo mais paciente com os deliverys que atrasam e mais tolerante com o catálogo da Netflix, porque o Leo me lembra de que estamos todos no mesmo barco de "tá difícil pra cacete" e qualquer entretenimento que nos deixe escapar um pouco é válido. Ele, em contrapartida, passou a entender melhor o silêncio, e agora o abraça junto comigo. Nós dois somos ansiosos, e vejo que a gente alterna nossos dias de crise quase como alternamos as tarefas de limpeza para podermos segurar as pontas pro outro quando um decide chutar o balde. Além do nosso casamento, estamos construindo também uma nova amizade e, se antes já éramos parceiros, agora somos cúmplices.
Mesmo sem querer, penso no Pedro e nas ramificações daquele encontro acidental há meses e depois de tantos anos. É empoderador reapropriar tudo aquilo que é nosso e a gente insistiu em chamar pelo nome de outra pessoa por tempo demais. Ele deixou de ser peso para virar um retrato daqueles que eu falei no começo, mas eu deixei de ser sua espectadora.
Esse ano, eu fui o bem, eu fui o caos, eu fui o riso, eu fui o auxílio, eu fui a companhia, eu fui a falta, eu fui a presença, eu fui o medo, eu fui a convivência, eu fui a solidão, eu fui o silêncio, eu fui o nervoso, eu fui a paciência, eu fui a angústia, eu fui a esperança, eu fui tudo isso e nada disso, talvez só alguns itens, para as pessoas que eu amo, e elas para mim. Não vou prometer ser melhor ano que vem porque ainda não acredito que o ano que vem vai acontecer mesmo. Até apostei com o Leo. Tô torcendo para ele ganhar.
Catarina Helena Drummond, 35 anos