Leo ganhou a aposta. Já estamos quase no final da primeira semana de 2021 e o planeta Terra não explodiu em um amontoado de luz, dando fim ao mundo como nós conhecemos. Estamos aqui, vivos, no mesmo eixo de rotação. Talvez fosse uma evolução, ir tudo pelos ares. A possibilidade de renascer das cinzas parece mais convidativa do que a alternativa de tentar reordenar o cenário caótico ao nosso redor, onde há pandemia, antidemocracia e a espera pelo pior. Com esse meu humor, eu conseguiria convencer alienígenas a evitar passar por aqui. Mas eu estou errada, e essa minha atitude catastrófica não vai nos ajudar em nada, é preciso continuar. Para onde, eu não sei.
O Leo ganhou a aposta e isso significa que, por 10 dias, sou eu quem vai levantar mais cedo para preparar o nosso café da manhã. Enquanto espero a água esquentar, ao invés de amaldiçoar todas as circunstâncias que me tiraram da cama muito antes do que eu gostaria, me pego refletindo sobre como não prometi ser melhor porque não sabia se o novo ano viria e agora tô aqui toda despreparada. Eu nunca dei muita bola para rituais de virada de ano — nada de ondinhas, roupas brancas, uma lista de metas para ignorar. Via essa passagem mais como um simbolismo dentro de um grande contínuo, uma mudança de ciclo geral, a minha mesmo vindo só com o meu aniversário, quatro meses pra frente. Evidentemente, ainda não dominei por completo esse negócio do mundo não girar em torno do meu umbigo. Aos poucos eu chego lá. Enfim, não sei se é o acordar cedo, se é o fluxo mais intenso de notícias, ou se é o gostinho de novidade, ainda que inho, depois de tantos meses de uma rotina tão engessada, mas o fato é que dessa vez eu senti, e venho sentindo, a mudança de chave global.
Essa ideia de algo global, guardadas as proporções, é que tem me provocado. Talvez a palavra não seja exatamente essa, mas algo um pouco menos amplo, com um sentimento maior de proximidade, algo mais… coletivo. Vou começar de novo:a ideia do coletivo tem me provocado. Num ano em que um fenômeno global, e aqui as proporções estão adequadas, alterou a vida de literalmente todo mundo, eu fui muito egoísta. Não egoísta no sentido de sair por aí sem máscara, organizar festinhas e comprar todos os papeis higiênicos e luvas descartáveis disponíveis, mas no sentido de me sentir angustiada sozinha. Foi o meu medo que me preocupou. Foram os meus planos destruídos, adiados, perdidos. Foi a minha ansiedade, foram as minhas crises, as minhas dificuldades. O resto todo era só som ambiente. Eu precisava dar conta do meu trabalho, das minhas obrigações, da minha saúde mental, do meu bem estar. Eu, meu, deus. Vai ver por isso foi tão pesado: eu deixei reformas e revoluções acontecerem dentro de mim, mas não fui muito lá pra fora, não. O Leo estava ali, assim como a família e os amigos, mesmo que de longe, e nós estávamos juntos, mas se muitas vezes não os vi, outras tantas fiz deles uma extensão de mim, e não é assim que as coisas funcionam. Ou pelo menos não é assim que devem funcionar.
O autocuidado tem seu lugar de ouro, mas a solidariedade também tem. E eu não fui solidária quando fui tomar um café socialmente distanciado com duas amigas do trabalho e, enquanto elas dividiam suas angústias perfeitamente razoáveis, muitas vezes iguais às minhas, fiquei irritada por conta da quantidade de vozes diferentes. Não fui solidária quando a Fernanda ligou e eu fiquei contando os minutos para ela parar de falar e eu poder voltar a olhar para a parede e dar atenção aos meus pensamentos ansiosos. Não fui solidária tantas outras vezes em que falhei em olhar para o próximo e não ver um reflexo, ou uma sombra, de mim e das minhas necessidades. Eu não ignorei os números, mas ignorei as pessoas que eles significavam. A minha angústia não se deu em solidão: 2020 aconteceu com todos nós. E, para que 2021 tenha pelo menos uma mínima chance de ser melhor, é preciso olhar para além do próprio bule de café, para fora da janela, lá longe. Começando pelo entorno. Dá para cuidar da ansiedade e ouvir a amiga, o pai, a atendente da farmácia, se a gente der um passinho pra lá, um passinho pra cá. Dá pra pedir ajuda e oferecer também. Dá pra viver dentro e fora e se cuidar. É preciso que dê, porque são as vidas e os mortos e os caminhos tortos de todos nós em jogo. Não só os meus. Eu não sei bem como, mas o mundo continuou sem explodir, e eu e todos nós precisamos continuar com ele, também sem explodir, preferencialmente. E eu acho que a gente só vai conseguir se olharmos uns pros outros e não enxergarmos espelhos.
Eu vou chamar o Leo e a gente vai tomar café e eu vou tentar fazer sentido de tudo isso mais lá fora e menos aqui dentro. Feliz ano novo.
Catarina Helena Drummond, 35 anos