A minha avó mãe do meu pai morreu há algumas semanas. Foi meu primeiro contato com a morte e achei tudo muito estranho. A gente sempre escuta coisas sobre como cada um lida com esse assunto de um jeito, gente que aceita, gente que tem medo. Eu confesso que não entendi nada direito, e agora tô aqui tentando entender. Meu pai, quando aconteceu e nos dias que se seguiram, foi muito prático e cuidou de tudo com um olhar sereno no rosto, como quem cumpre uma missão. Mas agora, com o Natal chegando, eu vejo ele andando pela casa, se escondendo pelos cantos com os olhos marejados. Ele tem escutado muita música antiga ultimamente. É por isso que, quando minha mãe perguntou o que eu queria de presente, eu disse que queria uma resposta para a seguinte pergunta: o que acontece com quem a gente ama?
Ela não entendeu, ficou me olhando com uma expressão esquisita como que preocupada. Eu deixei ela lá, pensando, não quis explicar nada. Mesmo que quisesse, não saberia explicar, preciso que ela faça isso. Na verdade, é uma coisa muito simples: vovó morreu, mas não deixou de existir. Ela tá nas músicas velhas de papai, no meu andar descalça pela casa — algo que aprendi como quem aprende a falar —, no jeito como nós dois apertamos os olhos quando tentamos entender alguma coisa complicada.
E não é só ela. Aparentemente, as pessoas que a gente ama estão por toda parte. Por exemplo, eu mordo minha bochecha quando fico brava porque a Juliana, minha amiga da escola, faz isso quando a professora chama a nossa atenção. Mamãe passa perfume antes de dormir porque a mãe dela também passava — e eu, quando me casar, vou fazer a mesma coisa. Papai massageia as próprias mãos quando fica nervoso porque é o que mamãe faz. E eu tomo meu café preto e sem açúcar porque papai toma o dele preto e sem açúcar, e mamãe acha que quem é capaz disso é capaz de coisa muito pior e dá risada.
Dá pra entender o que eu tô querendo dizer? A questão é que as partes do nosso todo são também partes de outros todos, e quanto mais o tempo passa e mais a gente vive, mais o todo aumenta e com ele a origem das partes. Então, mesmo que vovó tenha morrido, ela continua por aqui, não só na família dela, mas em todas as pessoas que ela amou e a amaram também. E isso não acontece só com a vovó nem só com as pessoas que já morreram, afinal meus pais e a Juliana estão vivinhos vivinhos. Todos nós vamos sendo e trocando partes uns com os outros. E, se eu conseguir explicar para o papai que o que acontece com quem a gente ama é que elas ficam, então talvez ele entenda que a vovó não morreu morrido, e aí ele não vai mais precisar ficar triste pelos cantos. Por isso que eu, mesmo já sabendo a resposta, pedi ela de presente para a minha mãe: se eu falar pra ele do jeito que falei aqui, duvido que ele vá entender alguma coisa. Os adultos tem uma dificuldade imensa de entender o pensar de uma criança, e eu preciso que ele entenda para que eu possa dar a ele o melhor milagre de Natal de todos os tempos: aquele da vida.
Espero que a mamãe consiga responder minha pergunta num adultês que o papai vá compreender. Mas, se ela não conseguir, tá tudo bem também, pois eu o amo, e então eu fico, e esse parece ser um presente que ele também gostaria de receber. A melhor parte é que é de graça.
Catarina Helena Drummond, 10 anos