Catalena 03/06/2001
Acho que me sentiria amada se me apresentasse à minha mãe da forma como ela gostaria. Mas me mostrar de outra forma traria outro tipo de dor.
Quando vão falar de mães, de maternidade, as pessoas se detém no tal do “amor incondicional”. É, “amor incondicional” com aspas mesmo, porque ninguém fala das letrinhas pequenas no final da página, aquelas que delineiam as — vejam só — condições, taxas e limites para esse amor original. Claro, em situações extremas, de vida ou morte, no limiar entre a segurança e o abismo, o amor de uma mãe parece se mostrar de fato incondicional, sem reservas ou perguntas. Mas o cotidiano da vida supera em quantidade os seus estados de exceção, e é nos limites do dia a dia que esse amor mostra as suas arestas brutas.
Essas observações não são fruto de alguma briga homérica na casa das mulheres Drummond — elas são fruto da rotina. Minha mãe e eu temos personalidades muito parecidas, quase como reflexos de um espelho, e isso prejudica o nosso entendimento mais do que auxilia. Embora nós duas sejamos pessoas reservadas, muito mais observadoras do que participativas, nós ainda assim exigimos estímulos do ambiente ao nosso redor, e é aí que nossas diferenças começam. Minha mãe gosta do seu próprio silêncio, do seu silêncio em resposta a um discurso alheio que a mantenha entretida e ofereça um foco para a sua atenção. Meu pai costumava cumprir esse papel, sempre conversando sobre tudo e nada só por conversar, ocupar espaço e tempo, ocupar vazios. Mas meu pai já não mora mais aqui, e eu que moro gosto de silêncio, pura e simplesmente. Não do silêncio como resposta, não do silêncio como condição, mas do silêncio em sua naturalidade, aquele que se coloca quando não há nada a dizer sobre um dia banal. Minha mãe vê essa minha quietude como punição, como uma tentativa explícita de tentar me separar e me distanciar da nossa casa, dela. Essa interpretação a machuca e o seu primeiro impulso, como pessoa humana que é, é me machucar de volta. Talvez não seja uma atitude consciente, mas é uma atitude que se manifesta em todas as vezes que ela exige de mim um comportamento, uma natureza que é essencialmente diferente da minha. E aí nós entramos num ciclo no qual nos ferimos repetidamente por não atendermos às expectativas uma da outra — eu por não ser como ela gostaria que eu fosse, ela por não me aceitar da forma como eu esperava em vista do seu “amor incondicional”.
Talvez eu esteja cometendo um equívoco ao atrelar aceitação a amor. Talvez o fato de ela não me abraçar na minha totalidade não tenha nada a ver com falta de amor. Eu não saberia dizer, eu não sou mãe, e talvez seja justamente daí que venha meu equívoco, afinal eu só tenho olhos de filha. O fato é que, nesse momento no tempo, eu não me sinto amada, e acho que me sentiria se me apresentasse à minha mãe da forma como ela gostaria. Mas me mostrar de outra forma traria outro tipo de dor e, enquanto eu não quero continuar contribuindo para seu sofrimento, eu também não quero sofrer. Será que não há um meio termo? Uma forma de conciliar nossas personalidades parecidas de naturezas diferentes? E mesmo que haja, como encontrar uma conciliação se nos vemos como adversárias em uma batalha que não queríamos que existisse? Não acho que ela confie em mim para não machucá-la, e eu acho que não confio nela para não me machucar. E aí, nessa tensão de quem chega numa encruzilhada, a escolha pelo diálogo se faz necessária, mas eu gosto de silêncio, e minha mãe está cansada, e nós não nos entendemos.
Catarina Helena Drummond, 16 anos
Escrito por Maria Ziareski para Nua&Crua